As formigas atormentam Ana, que não cresceu para conflitos. Minusculamente poderosas, se espalham, caminham, adentram. São aquelas de açúcar, que arrastam irritação rasteira para dentro de onde bem entendem. Olhos cansados de telas buscam: Monomorium pharaonis, formigas-faraó. Por isso, não morrem, são eternas essas malditas. Diz a nem sempre confiável, e em teoria, coletiva, enciclopédia digital, que elas se espalharam por todo o mundo, vindasprovavelmente de lugar caloroso e distante, alguma ilhota com a poderosa calma indonesa. Metáfora patética em seis patas, dominam a bancada da pia da cozinha e tentam avançar para todo o apartamento, caminhando de forma militarmente triste, com a cor mórbida proveniente da ordem, em fileiras assustadoras do alto de seus dois milímetros. Um imóvel lotado, com milhares de convidados se aglomerando: assim vemos nosso lar pela primeira vez. Antes, elas pareciam poucas, pontuais.
Alguns dias e as notícias começam a se esgueirar por baixo da porta. Faltou gás na Zona Sul, já no primeiro momento. Dois conhecidos foram internados na Zona Norte. Eles não vão fazer nada para impedir. A periferia começa a ser entubada e é o medo que inunda as classes medianas vazias, não o amor: a empatia da maioria é terrivelmente seletiva. A casa grande não pode viver sem os braços dasenzala, os lucros imediatos não podem diminuir, a ciência não pode ser escutada. Vamos perder a vantagem da máquina do tempo, a Europa está dois meses no futuro, é só olhar e agir de forma diferente para alterar o nosso. Mas a janela aberta traz o vento contínuo: a casa grande não pode viver sem os braços da senzala, os lucros não podem diminuir, a ciência não pode ser escutada. Aquí dentro, a gente luta como pode para barrar essa brisa gelada de séculos, à distância dos outros e ao mesmo tempo juntos, furando a espessa camada das bolhas que impedem o ponto de encontro, o local comum, as mesmas referências, que talvez nunca tenham existido verdadeiramente. Horas de telefonemas, demensagens, de preocupações, de agonia. Uma amiga que não pode ficar um día sem trabalhar, o dinheiro do jantar vem das horas suadas ao sol. Um pai com um câncer se alimentando de seu pâncreas que pode precisar de um hospital a qualquer momento. Uma mãe com asma precisa se trancar para sobreviver.
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Transtornos obssessivos compulsivos se agravando. A polícia não dá tregua: mais dois jovens negros assassinados em Osasco, genocídio que vai cavalgar a galope ainda mais acelerado. Doze familiares que moram em um quarto, como fazer isolamento? Água e sabão onde nem tem água? Temos, todos, que nos manter dentro. Dentro. Ajudem-se para que não saiamos de nós mesmos. O futuro imediato é aterrador por ser fruto do passado sobre o qual todos caminhamos. A falta de sono se estica até a hora de acordar, contaminada. No sofá da diminuta sala, hora de abusar da companhia e do acalanto de Gilberto Gil, companheiro de confinamento, o país que também é, que em algum ponto é, ou deveria ser.
Ana, sonolenta e com a implacável beleza das pessoas atrapalhadas pelas manhãs, esquenta água para o café, derramando um pouco de pó aqui e líquido ali. Faz isso olhando para a porta da frente, trancada. Nossa mala segue na entrada do apartamento. Ela que, durante os últimos meses, tinha sido casa móvel, agora segue parada. Fechada, triste, não se sabe mais se cheia ou vazia. Os olhos inteligentes se voltam para outro lado: o sabiá chega saltitando o horario de sempre, cheio de penas apressadas. Envelheci feliz para pássaros. Esse se aproxima coberto de simpatia e de uma cor sobrinha do marrom, peito estufado e alaranjado. Com a imponência dos pequenos, vem na apertada varanda do apartamento em busca de sua fruta matutina. A cabeça esguia e bem desenhada traz um olhar vazio, mas conhecido. O sabiá é minha infância, minha adolescência, minha vida adulta. Ele me acha até onde não estou. Dessa vez, eu vejo. Chega para matar a fome, mais que para fazer qualquer tipo de visita. Hoje não tem nada para você. A partir de agora, o mamão papaia vai ser tão raro quanto os sorrisos das próximas semanas, por isso é melhor seguir voando de janela em janela em busca da solidariedade humana. Boa sorte. Alguma señora magra, alva e irritadiça pode se compadecer do seu bico e, quem sabe, jogar para suas penas algum resto podre de alimento. Essas mulheres e homens raramente se alimentam de frutas doces, compreensão, complexidades e verduras frescas, dificilmente vivem na gentileza, morrem no medo de melanina, de tambores, de alegria, de botecos, mas de vez em quando distribuem comida a pássaros e gatos, se esquecendo que os dois são inimigos mortais na natureza. Ou talvez o façam por isso mesmo, para alimentar mais inimizades. Matam a fome de bichos, não se comovem com humanos. Não peça coerência a essa gente, apenas um pedacinho de banana velha. Em dois dias, volte aqui e talvez a gente tenha sua fruta predileta e carinho. Há a possibilidade de que eu já tenha conseguido um novo fornecedor para nossas jabuticabas, goiabas e outras mais, e aí poderemos voltar a ser amigos, mesmo sabendo do seu interesse, que nem de longe agora vejo como sentimento sincero, mas que espero que volte a me enganar.
As formigas mantêm-se vorazes sobre a gota de doce de leite na pia nessa manhã. Tentamos de tudo para afastá-las ao longo dos dias: canela, cravo, agua fervendo. Hoje, minha missão seria ir para o mundo em busca de veneno. Tentar encontrar algum que seja eficiente e, se possível, não muito tóxico. Químico, perigoso e impiedoso, mas controlável. Eficiência dá alergias e a toxicidade atual sufoca. Mas não tem jeito. O arco, paciente, se retesou até onde deu, é hora de soltar a flecha. Não dá para ser tolerante, o momento é de partir ao ataque com força. Ana sente a cabeça coçando, patas nos braços, vê pontinhos se movimentando. As faraó possuem olhos pequenos, me conta a tela trincada do celular. E segue com a informação preciosa, exatamente por ser inútil para mim: esses olhinhos levam em média trinta e dois omatídeos, palavra que tive que buscar para saber o significado. Coleciono vocábulos e graças às formigas ganhei mais esse. Elas devem ver sessenta e quatro seres humanos dentro deles mesmos, pensando sobre os sons que chegam da rua e que fazem com que eu não saia em busca do veneno. Não hoje.
Hoje tem feira aqui na rua. Feira. Ouço o barulho das pessoas. Vida. Sou daqueles seres humanos que adoram caminhar entre barracas, ser observado pelas frutas e retribuir o olhar, trocar ideias com os feirantes, desviar das tiazinhas com as compras. Peço licença ao verdadeiro dono do comércio e da rua, Exu, pago sua cota e caminho por ali, feliz. Não sei quando farei isso novamente. Não irei nem à porta do edifício para ver o movimento. Enquanto estabelecimentos de alimentos cujos donos são da classe média e alta se organizam em “deliveries”, os feirantes seguem sem nenhum tipo de solução para seu comércio absolutamente essencial, simples, de gerações. Um tipo de venda que pede concentração de gente, circulação, sorrisos, inteligência e todos falando e gritando por cima dosalimentos. A feira, e sua falta de ordem organizadíssima, é um pouco do melhor do jeito do brasileiro. Sem a proteção de ninguém, espremidos por palavras e empurrados por ameaças, feirantes nessa quinta-feira são obrigados a seguir seu ritmo sem pausas e sinto calafrios ao ouvir o burburinho da feira, som alegre e quente, mas que nessa manhã traz prenúncio de lágrimas para ouvidos atentos.
Ao final do dia, cada uma e cada um voltarão para seus lares, talvez levando mais que cansaço e sensação de dever cumprido para os recônditos mais distantes da cidade. Tudo se espalhando. Sentado no sofá enquanto Ana esquenta seu pão no forno e acorda seus potentes neurônios com goles do café que perfuma a sala, vejo meus pés caminhando pelo longo corredor de barracas coloridas. O perfume do café é substituído pelas mangas vivas que invadem as narinas, enquanto Ribamar grita o preço delas, me cumprimentando como sempre e fingindo algum tipo de intimidade que gera uma falsa promoção-especial-e-única-para-a-cliente-amiga. Talvez fale algo sobre meu chapéu, artigo fora de moda e vivido pelo tempo.
Páro, apalpo as frutas tingidas de vermelhas, amarelas e verdes sentindo a maciez e doçura nos dedos, nos mesmos pontos que alguns fizeram antes de mim, pessoas se tocando sem saber, e devolvo a Ribamar algumas que não me agradam, escolhendo pelo menos três que estejam amadurecendo em días diferentes. Negocio, troco espertezas, risadas e obviamente pago mais caro do que deveria, imaginando que fiz bom negócio. Vejo um garoto caminhando entre bolsos e bolsas, enchendo suas mãos com trocados desprotegidos em carteiras inocentemente mal guardadas, esquivando da fome. Uma guerra sonora estoura entre os gritos de Ana das Verduras e Zé das Batatas, batalha simpática de altos decibéis travada de barracas-trincheiras vizinhas, separadas apenas por uma poça de água cheia que pede calma e atenção e que, desobedecida, molha pés em chinelos, tênis modernos e sapatos lustrosos. A barraca de folhas, ervas e temperos de Cabocla agarra meu nariz e meu olhar, me fazendo rico de manjericão, coentro, folha-da-costa, macassá, lavanda, salsinha, arruda, alfazema, levante, hortelã, capim-limão, alecrim, babosa, sálvia. Verdes de todas as cores e para diferentes usos e principalmente desusos se empilham na minha sacola enquanto esbarro em executivos com seus tempos agressivos que vão além da velocidade da feira. Seus fétidos humores caem ao chão e se transformam em abundantes risadas no rosto do povo dos peixes, mas os executivos não escutam, não falam, não vêem. Reclamam, isso sim, do cheiro dos animais marinhos e dosrios, que só são bem recebidos nas suas mesas depois de limpos por mãos invisíveis, temperados por sabedoria ancestral e desprezada, servidos sobre e sob contas caríssimas que compensem em algum lugar de suas fracas personalidades as horas dedicadas ao acúmulo, à exploração de funcionários e à horta bem regada de gastrites, ataques cardíacos, relações desfeitas e diversostipos de tumores adubada com a busca da desprezível conta cheia de zeros.
Finalmente chego à área das bananas: oito barracas com exatamente a mesma variedade de frutas, das mais verdes às mais maduras, das pequenas às maiores, cada uma com seu sobrenome: nanica, ouro, maçã, prata, da terra. Prezo bananas mais que fortunas e ganho meu tempo ali, antes de ir até a barraca da moça brasileiríssima com traços japonesíssimos e comer um pastel gorduroso e delicioso, que escorre pelos dedos mesmo envolto no papel barato áspero.
Mastigo a inteligência absurda tanto de vida quanto comercial, ignorada por muitos. Uma organização coletiva e trabalhadora, nossa possível economía transformadora, que funciona com suor e alegria e que está absolutamente ameaçada. Um “formigas filhas da puta” me traz de volta ao sofá e à dorzinha na região lombar que ele me traz.
Meu reflexo imediato é o de me levantar vagarosamente para não ser notado, mas o tamanho da sala não permite. Minhas manhãs são nascidas em péssimo humor e desde sempre sou desprovido de equipamentos para uso do cotidiano antes do meio-dia, mas formigas não esperam e Ana, que acorda o sol com alegrias, menos ainda. A vacilante enciclopédia digital diz que nossas companheiras se alimentam até mesmo de polidor de sapatos. Sorrio. Mais um motivo para que usemos todos sandálias e tênis e, em momentos de luxo, pés descalços ricos de chão. Seguindo pela lista de alimentos preferidos desses animais, Ana repara que nossa própria lista de compras a fazer contém muitos ítens idênticos aos delas, o que mostra que o paladar faraônico é extremamente parecido com o nosso. Faraós. Imagino colônias de formigas com pirâmides, templos luxuosos de pedras, incensos, louvações a Seth, Isis, Horus, Osisirs, Anubis, mas logo em seguida as vejo marchando e a repressão militar a protestos no Cairo me parece mais equiparável aos seus movimentos e silêncios. Chego mais próximo da tela e leio, voltando às informações e escapando dos delírios, absorvendo que suas colônias são compostas normalmente por diversas outras, formando uma intricada megalópole interligada, sem hostilidades entre membros dos diferentes grupamentos e que, assustadoramente, essas formigas podem contar com diversas rainhas. Só se mata a colônia tirando a vida da soberana e elas são muitas, o poder está distribuído. Invejo essa cooperação entre diferentes grupos, já que redes sociais derreteram as frágeis Pontes humanas, cristalizando Outro onde antes poderia existir o Parecido. Essa ajuda entre as diferentes colônias faz com que as filhas da puta sobrevivam a ataques genocidas como os promovidos por nós contra elas, e por isso o veneno precisa ser muito bem elaborado e utilizado. Diversas, determinadas e, principalmente, unidas: não dá para esmagar uma colônia por vez e, assim, acabar com todas facilmente.
Uma das muitas forças de Ana está em frasear pensamentos profundos e complexos que solta como árvores largam suas folhas, com leveza e sem alarde.
Cabelos presos no alto da cabeça, camiseta sem mangas e larga, uma simples calça colada determinam a moldura para as duras frases de hoje: de que adianta
essa gente gritar alto e fazer o igual? Logo esses mesmos vão se proteger e vão esquecer do horror, que vai seguir longe deles e extremamente próximo. Tenho que concordar, passando mateiga em uma fatia de pão integral, pensando que a lucidez vive cada dia mais solitária. Ana foi forjada sem discusos dramáticos e sem afetações, desprezando linguagens complexas que escondem o vazio de ideias. Nasceu já entendida de que profundidades não precisam ser taciturnas, arrogantes ou deprimidas. Viu o céu pela primeira vez no Rio de Janeiro, foi acalentada com dengos e tapiocas da Bahia que corre em seu DNA, aprendeu a cinza praticidade de São Paulo, respira verde e é apaixonada pelo mundo.
Nascida das águas e para as águas, conta que nessa noite sonhou nadar, talvez porque saiba que o mar está se colocando com meses de distância, talvez mais.
Afundou entre baleias e golfinhos, enrolou-se como um feto, dançou movimentos desconexos nas profundidades transparentes, disse que até me encontrou por ali, de onde submergiu em uma banheira pequena em um jardim de uma casa não reconhecida. Um mergulho virou outra vida. Lavo a louça enquanto ela prepara tintas e pincéis para colorir a falta de perspectiva geral. A exuberância das diferentes cores que querem apagar está garantida aqui dentro.
A vizinha coloca uma música horrenda. No prédio, que fica à distância de um arremesso de bolinha de papel, Vizinha é uma das nossas companhias visuais. De uns dias para cá anda mais salpicada de simpatia, dentro de seus menos de setenta anos. Nem gatos caminham pelos móveis pesados, sozinha e talvez pela primeira vez solitária, inventa ocupações. Briga pelo telefone com sobrinhas, irmãs e amigas, concorda apenas com uma mais querida e sorriu para cá duas vezes enquanto colocava ou tirava roupas do varal. Limpa a casa diariamente, movimenta móveis, empurra aspirador de pó, toca a terra das plantas com os dedos, poda, sacode o tapete pela janela, escuta notícias vindas do rádio pela noite. Ana brinca que gostaria que todos os problemas do mundo no dia de hoje fossem o péssimo gosto sonoro da Vizinha.
Em volume alto chega uma melodía com sabor azedo new age, derramada dos distantes anos oitenta do século anterior, temperada com teclados frios, notas esticadas e repetitivas emulando calma, mas que só produzem desgastes na fina camada de paciência. Alguns
maravilhosos segundos de silêncio e alívio, a melhor parte da seleção musical do dia, não são suficientes para prepararem uma pessoa para uma segunda sessão de depressão, que emerge de uma orquestra que conduz a canção com pretensão de grandiosidade, a sempre patética e ínfima pretensão de grandiosidade. As duas músicas, se nomeadas assim por algum ouvinte caridoso, juntas poderiam ser parte da trilha sonora de qualquer filme fracassado naquela década de exageros, provavelmente uma aventura mística medieval com atores caricatos enão esforçados. Sem falar nada, concordo com Ana: as caixas sonoras da Vizinha Dois Sorrisos poderiam ser o tema das minhas preocupações, deveriam por lei e justiça serem os únicos problemas de qualquer ser humano, e não as pilhas de corpos, dores, injustiças, lágrimas, agonia, insegurança, desespero, solidão, vazios, violência, incompreensão, horror.
A infância tinha sido inundada por outros sons. Da janela do quarto dividido entre irmãos em outro bairro da mesma cidade, chegava durante alguns dias da semana a força que guarda todas as músicas e instrumentos, a batida da escola de samba. Crescer ao som civilizatório de tambores é privilégio e dele me fiz sabedor só depois de adulto. De alguma forma, me moldaram e me educaram sem palavras aqueles ensinamentos e ficaram ali escondidos enquanto ouvia discos e mais discos na sala, ou fitas k7, ou rádio ou a janela da frente, aparelho sonoro que trazia buzinas, roncos de motores, sons de alarmes. Descobertas e experiências de infância musicada, que também teve melodias de grilos e gafanhotos, corais de árvores, shows de anfíbios, turnês de répteis, sempre em finais de semana e férias. Ana teve muitos desses luxos musicais em casa, talvez com uma mãe com ainda mais amor pela música brasileira, e prefere recordar a Salvador que traz a melodia da bondade da avó baiana, som escapando de sorriso feito de horizontes e águas, cantoria antiga e, por isso, moderna.
Dessas memórias, preferimos, juntos, esquecer discos e músicas feitas para idiotizar crianças e vender produtos atrelados, que também fizeram pequena parte desse passado e a que, mesmo com a diferença de idade entre nós, fomos os dois submetidos, armadilhas traiçoeiras nas quais evidentemente devemos ter caído, mercado selvagem e calculado, funcional, pobre por ter acesso a milhões de dólares para convencer. Esquecemos, não vivemos aquilo, não é. A memória é a imaginação pontuada de fatos, editada pelo tempo, vestida com a fantasia da verdade.
Ainda não faz frio e caminhar descalço pelo banheiro não é tarefa muito triste. As formigas-faraó têm preferência por lugares escuros e aquecidos, normalmente perto de tubulações de água quente, entre azulejos, atrás de armários, em rachaduras e vazios nas paredes, em rodapés e debaixo de pisos. Podem estar agora mesmo por aqui se reproduzindo em silêncio e na invisibilidade, aumentado seus domínios para depois caminhar à luz. Procuro minha toalha ao sair do banho e vejo a fileira escura se movimentando nos ladrilhos, vinda da janela. Movimento a cabeça atrás de mais delas. Consumimos sabonetes em grandes quantidades na nova vida e o estoque debaixo da pia, feito nos primeiros novos dias, parece pequeno. Meus dedos já contam com outra sensibilidade, a pele mais fina e descascando, digitais apagadas que não mais seguram catracas de ônibus, copos em bares, xícaras em cafés, mãos amigas, moedas ou portas de metrô. Comprar sabão, colocar na lista e torcer para que as faraós não gostem do perfume escolhido é hábito. O de gengibre escolheu Ana. Eu fui escolhido pelo delavanda, mas tanto um quanto o outro andam se escondendo em estoquesacabados de farmácias e mercados, brincando com ansiedades recém-criadas.
Escuto o estalido que é o som do fogão sendo aceso na cozinha enquanto me seco, agradecendo ao fato de termos poucas toalhas nos armários, todas veteranas, educadas em anos de esfregação, treinadas nos cantinhos da pele.
Entre as verdades imutáveis da humanidade está a de que toalha nova não enxuga bem. Na pia, um elefante se banhou: água e restos de bolhas e espuma pedem que eu trabalhe por ali ainda antes de me vestir, secando, pela primeira de algumas vezes ao longo do dia, o estrago perfumado provocado pela quantidade recém-nascida de lavagens a mais. Com o papel encharcado, sou surpreendido por outro grupo das pequenas notáveis entrando e saindo pelointerruptor ao lado da porta do banheiro. Explodo na minha pequenez diante delas, massacrando as que posso no papel que se desfaz em água. Garganta, nariz, olhos se umedecem por outros motivos e deixo o banheiro. O almoço começa a ser preparado, todo feijão pede tempo longo e Ana caminha saltitante
para usar o espelho no recinto onde deixei minha tristeza. Você viu que as formigas estão até aqui? O silêncio responde.
As previsões científicas ficam em milhões, se algo responsavelmente drástico não for feito, e sabemos que não será. Logo nos primeiros dias foram estudadas no sofá cinza, escutadas e vistas em vídeos antes da porta da frente se trancar e nascerem lindamente o casal do apocalipse nesse esconderijo. A racionalidade matemática, a força dos cálculos, análises e aprendizados materializados por testes rígidos não pertencem a esse privilegiado pequeno apartamento e, por isso, são e sempre foram respeitadíssimas por aqui, sendo convidadas ilustres a quem escutamos com admiração e ouvidos aprendizes, amigos que somos de mulheres e homens da ciência avançada. Entre eles existe acúmulo de conhecimento, também poderoso, que serve de compasso e guia se bem usado e de matéria para morte se ignorado. Aprendi na minha universidade de chão de barro e água de quartinha que veneno e remédio moram na mesma folha e que, para usar o correto, é preciso do especialista. Ossaim é o cientista que conhece o segredo e sem ele não adianta buscar sozinho qualquer cura. A velha e sábia África civiliza quem quer escutá-la, com sua tecnologia avançada na natureza esuas complexidades filosófico-espirituais. Saudemos os cientistas. Quando chega a compreensão imediata de quem é que vai sofrer o massacre e o impacto, o desespero vem junto. Por isso as horas aceleradas e brutais de luta nos telefones e a troca da hierarquia, colocando a poesia um pouco abaixo. É preciso gritar, unir, somar, barrar o genocídio de nosso povo, das peles, das falas. Vida. Nossa, de todos. A cavalgada assassina vai ser dirigida, utilizada, intencionalmente. Não é apenas ignorância e obscurantismo, é uso intencional e avassalador de uma nova máquina de morte que ficou disponível por acaso, atitude vinda de tempos históricos que muitos fizeram questão de esquecer e não ver renascida, porque nunca morreu. Saiu dos disfarces e dos poros em tecidos epiteliais desprovidosde melanina que se revezam e rezam por um único deus fundido a mercado.
Escuto os encantados e o sagrado, a natureza tem resposta sábia e é a mesma tradução dos cientistas em sua explicação. Os sons, a literatura, e outras artes também mostram o caminho, que não é de flores. A profundidade da dor humana e da capacidade de gerar horror precisam ter equivalente resposta. Ana segue atenta como sempre, firme como nunca, com seu castelo de informações e raciocínios fora de redes e, nesse momento, colocando mais água no feijão. Eu não faço ideia de que roupa vai me vestir e observo uma disputa entre uma camiseta cinza e outra branca durante alguns minutos, até que a janela aberta para a vizinhança é fechada com uma cortina, afinal a intimidade desses dias não chegou a esse ponto.
Com a cara colada de chão, sigo minhas hóspedes de seis patas depois de almoçar. Ou talvez eu que seja o inquilino delas. Ana, de dentro de um livro, projeta uma dúvida em meu cérebro retorcido pelo momento. E se não forem as faraós? Poderiam ser formigas-argentinas. Com esse nome simples o silêncio da certeza é destruído. Dois milímetros que provocam desordem mental e derretem toda a segurança de conhecê-las. A bateria do jovem aparelho celular de sete anos adoeceu com o uso, tratando mal a tela que meus dedos tocam. Tento fotografar a fila impávida, mas não consigo. Ela vem me ajudar. Ajoelhados, desaprendemos os insetos como certos e comparamos o que vemos no solo com o que se encontra na tela do computador. Podem ser. Linepithema humile, diz o oráculo falho, explicando que até no nome científico ela mudou pelo menos três vezes. Viraram argentinas, as egípcias que nunca foram de lá, nesse momento e para sempre. E mesmo se fossem sempre argentinas, carregam outros nomes nas costas desde sempre, como paraguaias, ciganas, açucareiras. Podem ser, mesmo nós dois querendo que não sejam nunca mais. Não escavam muito bem, e têm prática de ocupar ninhos abandonados por outras ou qualquer espaço. De faraós a ciganas em segundos, formigando sem perceberem a mudança brusca que sofreram. Ana coça os braços e eu as vejo dentro das minhas calças mesmo elas não estando. Buracos e vazios também são lugares para suas colônias e elas são capazes de expulsar outras espécies por onde chegam. Na California, quase extinguiram um lagarto por acabarem com as formigas locais, único alimento no cardápio do réptil, que não tem muita predileção pelas paraguaias, mesmo sendo elas chamadas de ciganas ou apelidadas de argentinas para enganar seu paladar.
Tento trabalhar no nosso único cômodo. O tempo empurrado estava correndo mais rápido que o Tempo, e a desaceleração é necessária. Agora, a ânsia de muitos em tentarem manter a velocidade não natural e doentia expulsa as pessoas de seus lares. As estruturas mal construídas impostas como falsa segurança, as mentais, familiares, de sociedades, da relação com a terra, não se sustentam na velocidade baixa, desabando como personagens de desenho animado que caminham no ar até olharem para baixo e entenderem que não há mais chão sob eles. O celular toca e uma das minhas bússolas me chama. Seu Tonhão é vivência e sapiência em mais de setenta e sou milionário por ter sua amizade. Ele diz que faço companhia a ele em seus momentos de isolamento, mas é sua fortaleza quem me acalenta e me presenteia sempre com generosidade escondida. Homem sabedor de subversão criada pela festa, de conhecimento tão profundo que não cabe em livro, em enciclopédia ou em biblioteca. De linhagem nobre, competente até para risos, ferro forte, me leva para as diversas epidemias a que sobreviveu, como quando a varíola atingiu seu mundo inteiro na infancia em casa simples na roça, ocasião do passado atualíssima em que toda a família e vizinhos foram atingidos. Por onde caminhasse, ela estava. Triste, dura e fatal, misteriosa e impeditiva, levou muitos e também foi minimizada e usada pelos frágeis donos do dinheiro que se acreditam poderosos, esses ladrões de plantações que só pertencem à terra. Obrigavam os funcionários a colocaremseus braços à disposição, abusavam de seus calos e seus suores, mesmo com aspústulas e feridas e febres e dores. Rei Tonhão sobreviveu àquela e logo se trancou nessa, antes mesmo de alguns médicos arrogantes. Homem de cerebro privilegiadíssimo que tem trono conquistado e também cadeira simples na porta de casa quando quer preguiça e observação, entende que mesmo que demore, passa. Já viveu piores em piores condições e traz alegria e conforto na voz, o que não impede espaço para raiva, preocupação, tristeza e entendimento das atitudes genocidas sendo tomadas. Isso, de uma coisa só, de sim ou não, de curtir e descurtir, de seguir apenas um pensamento lógico, isso não é coisa nossa e, porisso mesmo, alegria, conforto, tristeza e raiva podem estar no mesmo lugar semse anularem e se enriquecendo. Preservador de mistérios vivos que cala para os outros, também desperta sambas potentes, aumentados por cerveja e palmas, ampliados por gente, corpos balançando. Ao escutar os versos não ditos em sua voz, a dor da longa demora da volta disso tudo me assola, junto com a alegria de ouvir as palavras desse pai e irmão mais velho, a quem só posso abraçar com a voz.
Ana chama. O casal do apocalipse, disciplinado na inversão de sua antiga disciplina, precisa entender como vai fazer a compra do veneno. Não sair de casa é nossa meta principal, sempre. Mas, se necessário, utilizaremos máscaras, luvas, álcool gel como aliados. Planos de deixar roupas na porta ao voltar, banho imediato, apenas um na missão. Não saímos nem para compras, para nada, para tudo. Como conviver com a ideia de estar espalhando a morte para os outros por conta de seus pequenos luxos? Como dormir pensando em aumentar os riscospara os que precisam mesmo sair e não têm alternativas? Como acordar lendo notícias de hospitais lotados e corpos sendo enterrados em valas comuns? Ela é meu batalhão e meu general, enfrentamos a guerra juntos, abrindo mão dos confortos e tendo coragem para fazer isso. A falsa valentia de sair às ruas bradada na loucura externa faz com que Ana chegue ao ponto de não ter nem mesmo paciência para algumas pessoas queridas. O macho que não tem medo do que está no ar, na verdade, é um covarde egoísta. Um de nós deve sair sem esseorgulho. Mas e se o veneno for cheio de contrários? As paraguaias podem sobreviver e a saída não vai ser recompensada. Pequenas poderosas, descobriu-se que três supercolônias delas em lugares distantes como Estados Unidos, Europa e Japão, na verdade eram uma só megacolônia. Testes científicos comprovaram, com complexidades de nomes como hidrocarbonetos e otros palavrões. Só as europeias são donas de um território de mais de seis mil quilômetros, e quando retiradas da Espanha e colocadas com suas companheiras do Japão, atuaram como pertencentes ao mesmo grupo. São a mesma coisa, não disputaram, não se agrediram, não se estranharam. Nossa casa pode fazer parte disso e não sabemos. Enquanto Ana calcula se farei ou não a visita ao mercado em busca do veneno, decidimos que é hora de exercícios, antes de voltarmos aos pensamentos. Músculos, pulmões, corrente sanguínea, ossos, vamos calibrando a máquina e bebendo mais água que o normal, fortalecendo a bela insanidade que é lutar contra isso. Pensando nos tempos.
Mesmo não tendo surpresas esperando no futuro, dói quando ele chega ao presente inalterado. A cada dia, uma notícia machuca, uma palavra estarrecedora corrói nossa humanidade, milhares que nos deixam e um que sorri com desprezo. Um que são alguns e que se mantém junto a seus parecidos como se manteve no passado. É o mesmo, são os mesmos, sem bigodes agora, sem fardas.
Apoiados em pessoas comuns, como sempre foram, banais. Discursos inocentes sobre a mudança linda que pode ocorrer com o novo momento não sobrevivem a um teste de realidade, e essa falsa fala causa náuseas. No pequeno prédio de uma amiga de classe média, ela teve que brigar para que dispensassem os funcionários da limpeza e seguissem com o pagamento deles, sugerindo que os apenas dez apartamentos se revezassem nas funções. Imediatamente ela passou a levar seu lixo para a rua, até que em dez dias ela foi sequestrada por um cheiro podre. A lata coletiva de lixo do edifício transbordava comodismo e restos dealimentos, falta de preparo e de noção de realidade, espalhando pelo solo escravismo colonialista e embalagens sujas. Nenhum dos vizinhos teve a capacidade de entender que o lixo não caminha sozinho para as calçadas, com as viseiras estruturais racistas tapando suas visões e suas narinas. Ela, novamente, tomou a iniciativa e carregou o lixo infectado sozinha, e é isso que devemos fazer.
Limpar o lixo impregnado que pode nos adoecer. Todo o comportamento atual no Brasil foi dito, falado, avisado. Palavra é ação. Palavra move. Palavras podem ser sequestradas. Quem sabe disso não são apenas filólogos ou escritores, mas também gente como o elegante artista plástico e sacerdote afrobrasileiro Mestre Didi, que se tornou um ancestral, e que não falava mais em público nos últimos anos de sua vida por saber, sentindo, que forças que a boca tem ao pronunciar algo movimentam mais do que a gente pode controlar. Deveriam ter escutado seu silêncio e entendido que não se pode deixar o ouvido ser invadido por certas palavras sem que algo se mova de volta. Sem a resposta. Não se dá a palavra, opoder, a quem vai usá-la contra todas as outras palavras e tentar ser voz única.
Surdos-mudos por opção fingiram não entender até onde estavam sendo conduzidos e conduzindo outros, a um buraco de onde agora não conseguem mais gritar pedindo socorro. Armas estão apontadas lá em cima e estão sendo disparadas contra todos.
Já estamos no segundo mês em que pouco se fechou fora de casa. O agrado aos empresários já vem: a reabertura do que nunca se trancou. A máquina de norte segue sendo utilizada como em nenhuma outra parte, e neste momento marca a história com corpos. Pela janela, Vizinha agora é Vizinha Três Sorrisos. Fomos criando redes de contatos que nos fazem esticar vozes e olhos para fora e entender que pode ser que dê. Dá. Estamos na toca, mas temos dentes e garras.
Um cientista amigo tenta de tudo, jornalistas, artistas, gente. Ao abrir a tela, a notícia vem de Ana: as formigas ciganas podem ser mortas por uma doce mistura. Sorrio para ela, o que me fortalece sempre, meu essencial é ela. De acordo com a enciclopédia que não usa papel, a melhor maneira de combatê-las é utilizando veneno com a força que só a lentidão traz, ação lenta e duradoura,uma mistura saborosa que vá sendo levada aos poucos para dentro da colônia.
Açúcar é o doce, água sendo pura e ácido bórico de agressividade poderosa. Mistura caseira. Essas filhas da puta estão com os dias contados, a encomenda já foi feta.
Texto magnífico! Felicitationes!